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O poder cautelar dos tribunais de contas no exame de licitações

POR: Antônio Marcos de Paulo

Resumo: Os Tribunais de Contas atuam com a finalidade de assegurar que os atos administrativos sejam praticados em reverência, entre outros parâmetros, à legalidade, à legitimidade e à economicidade. Uma das atividades mais relevantes desses órgãos reside no controle concomitante, de caráter primordialmente preventivo, de editais de licitação, com a finalidade de corrigir ou evitar irregularidades que possam macular a lisura de certames e de eventuais contratos, bem como causar riscos de danos ao erário na hipótese de celebração dos decorrentes ajustes. Diante de situações que exigem a tomada de medidas de urgência para evitar desperdícios ou desvios de recursos públicos, os Tribunais de Contas se utilizam do poder geral de cautela para, entre outros fins, sustar a prática de atos administrativos. O objetivo deste trabalho, então, é saber se esses órgãos de controle podem, de forma legítima, prolatar decisões cautelares determinando a suspensão de procedimentos licitatórios. Ao final, concluiu-se que, a despeito de certa controvérsia doutrinária, os Tribunais de Contas podem fazer uso de medidas cautelares para suspender licitações, valendo-se de poderes implícitos, na forma reconhecida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, bem como, doravante, da previsão expressa na Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).

Palavras-chave: Tribunais de Contas; controle preventivo; licitações e contratos administrativos; poder geral de cautela; Lei nº 8.666/1993; Lei nº 14.133/2021.


1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 ampliou, consideravelmente, o catálogo de direitos fundamentais. Daí decorrem impactos sobre a despesa pública, sobretudo em face da necessidade de atender à crescente demanda por direitos sociais, que exige condutas positivas por parte do Estado. Por outro lado, estabeleceu também diversos instrumentos destinados à fiscalização da gestão pública, inclusive, na parte atinente ao controle da realização de dispêndios.

Nesse diapasão, ganha importância ainda maior a atuação dos Tribunais de Contas, órgãos públicos especializados e independentes, que prestam auxílio técnico ao Poder Legislativo, titular do controle externo, na fiscalização da atividade financeira do Estado. Assim, de acordo com a Constituição Federal, as Cortes de Contas atuam com a finalidade de assegurar que os atos administrativos sejam praticados com base, entre outros, em parâmetros de legalidade, legitimidade e economicidade[2].

Sob o aspecto funcional, uma das atividades mais relevantes desses órgãos de controle reside no exame de editais de licitação e contratos administrativos. Cuida-se de controle concomitante, de caráter primordialmente preventivo, exercido com a finalidade de corrigir ou evitar irregularidades capazes de macular a lisura de certames licitatórios, bem como de causar risco de danos ao erário, na eventualidade de serem celebrados contratos antieconômicos.

No exercício dessa missão constitucional, por vezes os Tribunais de Contas se veem diante de situações que exigem a tomada de medidas de urgência para evitar desperdícios e desvios de recursos públicos. Nesses casos, se socorrem do poder geral de cautela para, entre outros fins, suspender procedimentos licitatórios.

Nesse contexto, o objetivo deste trabalho, sem a pretensão de esgotar o tema, é responder à indagação acerca da possiblidade de os Tribunais de Contas, na realização do controle pari passu da gestão pública, expedirem, de forma legítima, decisões de urgência determinando a suspensão de procedimentos licitatórios.

A pesquisa será de cunho qualitativo, na medida em que procurará examinar aspectos relativos ao exercício do poder geral de cautela pelos Tribunais de Contas no exame de processos de fiscalização de licitações. Desse modo, o alicerce sobre o qual se edificará o presente trabalho será a pesquisa documental em livros jurídicos, artigos acadêmicos e páginas da rede mundial de computadores.

Diante do exposto, registre-se que, inicialmente, merecerão sucinta abordagem alguns alicerces teóricos relativos ao tema, a exemplo da definição e da tipologia do controle da Administração Pública. Na sequência, ganhará ênfase a classificação do controle quanto ao momento do seu exercício (prévio, concomitante ou posterior). Por fim, cuidar-se-á da análise da concessão de cautelares no âmbito do controle concomitante de licitações por parte das Cortes de Contas.

2 CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Por força da adoção do regime democrático e da forma republicana de governo, os atos estatais não podem se distanciar da satisfação do interesse público. Por conseguinte, deve existir uma fiscalização constante, capaz de verificar, prevenir e reprimir potenciais desvios ou desperdícios de recursos públicos, aplicando, se for o caso, sanções aos respectivos responsáveis.

Segundo Marinela (2016), o controle da Administração Pública caracteriza-se como o poder-dever outorgado por lei ao Estado para análise, fiscalização, revisão e validação, ou não, de atos administrativos. Pode ser exercido pelo próprio autor do ato sob controle, por autoridade superior, ou mesmo por órgão ou Poder diverso. Na mesma linha, por se tratar do exercício de um poder-dever, o controle não pode ser renunciado nem retardado, sob pena de responsabilização de quem se omitiu (DI PIETRO, 2016).

Ainda de acordo com Di Pietro, essa fiscalização tem por objeto não somente a correção de atos ilegais, mas também, em certos casos, a revisão de atos inconvenientes e inoportunos:

 O controle da Administração Pública permite assegurar que a Administração atue em consonância com os princípios que lhe são impostos pelo ordenamento jurídico, como os da legalidade, moralidade, finalidade publica, publicidade, motivação, impessoalidade; em determinadas circunstâncias abrange também o controle chamado de mérito e que diz respeito aos atos discricionários da atuação administrativa. (DI PIETRO, 2016, posição 993).

Extrai-se da leitura desses ensinamentos que o controle da Administração Pública pode ser exercido dentro da estrutura de um órgão ou entidade, bem como, externamente, por um Poder em face do outro. Ademais, a fiscalização alcança tanto aos atos vinculados quanto aos discricionários. Serve, no primeiro caso, para conformar a atuação administrativa à vontade da lei. No segundo, em regra dentro do mesmo Poder, órgão ou em entidade, adotando razões de conveniência e oportunidade, é utilizado para revisar o mérito de atos praticados com certa discricionariedade pelo gestor público. Assim, os instrumentos de controle podem ser utilizados para sanar falhas, anular, revogar ou validar atos administrativos.

Após apresentar essa definição, registre-se, já no tocante às formas de controle da Administração Pública, que a doutrina menciona inúmeras tipologias. Segundo Medauar (2020, p. 44), isso dificulta a unanimidade e cria uma selva classificatória. Adotam-se, neste trabalho, as mais comuns segundo diversas fontes doutrinárias.

Inicialmente, em uma das vertentes, o controle pode ser classificado como institucional ou social. No primeiro caso, a Carta Magna atribuiu a órgãos da estrutura do Estado diversas competências e instrumentos destinados à fiscalização. Nessa seara, os artigos 70, 71 e 74 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) estabelecem que o controle institucional cabe essencialmente ao Congresso Nacional, responsável pelo controle externo, realizado com o auxílio do Tribunal de Contas da União, e a cada Poder, mediante um sistema integrado de controle interno. Por simetria constitucional, os entes subnacionais exercem o denominado controle heterônomo[3] (PASCOAL, 2009). Assim, nos municípios, o controle externo é feito pela Câmara de Vereadores. Nos Estados, tal tarefa cabe à Assembleia Legislativa[4]. Em ambos os casos, com o auxílio dos Tribunais de Contas[5].

No segundo caso, a Constituição outorgou à sociedade a oportunidade de participação ativa nessa missão de fiscalização da gestão pública. Para Oliveira (2018, posição 849), o controle social ocorre por meio da participação nos processos de planejamento, acompanhamento, monitoramento e avaliação das ações da gestão pública e na execução das políticas e programas públicos. Como exemplo desse tipo de controle, pela conexão com o presente trabalho, destaque-se o direito previsto no art. 113, § 1º, da Lei nº 8.666/1993, que permite a qualquer licitante, contratado, pessoa física ou jurídica representar aos Tribunais de Contas ou aos órgãos de controle interno contra irregularidades na aplicação da referida lei (BRASIL, 1993).

Sob outro enfoque, o controle poderá ser hierárquico ou finalístico. Hierárquico é o que resulta do poder exercido pelo superior em relação ao subordinado a partir do escalonamento vertical dos órgãos da Administração Pública, possuindo, assim, a natureza jurídica de ato de confirmação (CARVALHO FILHO, 2018, posição 366). Já o finalístico, também chamado de poder de tutela ou de supervisão ministerial, não decorre da hierarquia, sendo exercido pela administração direta (órgãos públicos) sobre a indireta (empresas públicas e sociedades de economia mista) com o objetivo de garantir a observância de suas finalidades institucionais (DI PIETRO, 2016, posição 137).

A respeito da origem, o controle poderá ser interno ou externo (ZYMLER, 2005). O primeiro, também chamado de intraorgânico, é realizado pela própria administração, ou no interior de um mesmo Poder. Por meio dele, pode-se examinar a legalidade e o mérito do ato administrativo. Zymler (2005) aponta, ainda, a finalidade de se verificar o custo-benefício e a eficácia na realização das atividades administrativas. O mesmo autor cita alguns exemplos desse tipo de controle no Brasil: fiscalização hierárquica, recursos administrativos, inspeções, auditorias, pareceres vinculantes, etc.

Por sua vez, como fruto do princípio da separação de Poderes, o controle externo é o realizado por um órgão que pertence a um Poder distinto do que praticou o ato. Insere-se no sistema de freios e contrapesos, uma vez que permite a um Poder controlar a atividade de outro (MARINELA, 2016). Como exemplos, mencione-se a sustação pelo Congresso Nacional de ato do Poder Executivo que exorbita o poder regulamentar (art. 49, V, da CF) e a anulação pelo Judiciário de atos administrativos praticados pelos outros Poderes[6].

Quanto ao momento em que é exercido, o controle poderá ser prévio, concomitante ou posterior (MEDAUAR, 2020). Considerando a importância dessa classificação para o tema desenvolvido no presente trabalho, opta-se por aprofundar a matéria no tópico seguinte.

3 O MOMENTO DO EXERCÍCIO DO CONTROLE

Ao examinar, no âmbito do direito comparado, a questão do momento do controle, Willeman aponta a existência de três modelos:

No sistema francês, a fiscalização exercida pelas Cours des Comptes é repressiva, operando-se a posteriori, ou seja, após efetuada a despesa. O modelo italiano, por sua vez, adota a fiscalização preventiva dos atos administrativos, de forma que, sem o registro no Tribunal de Contas, o ato não produz os efeitos pretendidos. Por fim, um modelo intermediário é seguido pela Bélgica, em que a fiscalização é preventiva, porém, sem a rigidez italiana. Se o administrador insistir na prática do ato, independentemente da ausência de registro pela Corte de Contas, o faz sob sua total responsabilidade. (WILLEMAN, 2011, p. 64).

Na mesma linha, Lima descreve a forma de atuação do controle em cada um desses momentos:

O controle prévio tem finalidade preventiva e é, essencialmente, realizado pela auditoria interna ou pelos sistemas de controle interno da organização que orienta os gestores e agentes a corrigirem falhas e adotar os procedimentos recomendáveis.

O controle concomitante é exercido, via de regra, por provocações externas à organização: denúncias, representações, auditorias, solicitações dos órgãos de controle e do Ministério Público.

O controle subsequente tem o objetivo de proceder a avaliações periódicas, como nas prestações anuais de contas, e possui conteúdo corretivo e, eventualmente, sancionador. (LIMA, 2015, p. 5).

Especificamente quanto ao controle prévio, Willeman (2020) afirma tratar-se de hipótese em que os contratos administrativos, sob a égide das Constituições de 1934 e 1946, ficavam suspensos se o Tribunal de Contas lhes negasse registro, só retomando a eficácia após manifestação do Poder Legislativo. Também reconhecendo cuidar-se de tipo de controle que, diferentemente do preventivo, subordina a eficácia do ato administrativo à prévia aprovação pelo Tribunal de Contas, Almeida (1999, p. 31) afirma que Antes de produzir os efeitos desejados o ato de gestão deve ser convalidado e previamente autorizado pela Entidade Fiscalizadora do nível de governo competente.

Dessa forma, para Willeman (2020), nos moldes da Constituição de 1988, o Brasil adotou, na essência, o modelo francês. Assim, a fiscalização ocorre, em regra, a posteriori ou, no máximo concomitantemente. Na mesma linha:

[…] a atuação dos Tribunais de Contas deve ser a posteriori, não tendo apoio constitucional qualquer controle prévio sobre atos ou contratos da Administração direta ou indireta, nem sobre a conduta de particulares que tenham gestão de bens ou valores públicos, salvo as inspeções e auditorias in loco, que podem ser realizadas a qualquer tempo […]. (MEIRELLES, 2016, p. 843).

Acolhendo a tese de que o controle preventivo, admitido pelo nosso ordenamento jurídico, difere do prévio, que vigorou até a Constituição de 1967, o STF, ao julgar o RE nº 547.063/RJ (BRASIL, 2008), entendeu que os órgãos e entidades fiscalizados não estão obrigados a enviar, previamente, ao Tribunal de Contas todos os editais de licitação, nem a ficarem aguardando o julgamento pela legalidade ou prévio registro para só então darem seguimento aos certames. Nada obstante, reconheceu que as Cortes de Contas detêm competência para solicitarem, casuisticamente, a remessa desses instrumentos convocatórios e dos respectivos processos licitatórios, o que caracteriza uma atividade típica do controle concomitante desses atos.

À luz desse posicionamento do STF, com as vênias de praxe aos defensores da existência do controle externo prévio sobre licitações e contratos, entende-se que essa modalidade não é contemplada no nosso ordenamento jurídico sob a égide da Constituição de 1988. Tanto isso é verdade, ao contrário do que ocorria nas Constituições de 1934 e 1946, que a manifestação do TCU não é mais condição de eficácia de atos ou contratos administrativos (WILLEMAN, 2020).

Desse modo, para os fins desse trabalho, considera-se que o controle externo sobre licitações e contratos sob a égide da Constituição de 1988, de acordo com o entendimento do STF no leading case constante do RE nº 547.063/RJ, representa, na verdade, o denominado controle concomitante ou sucessivo, cuja finalidade, ao contrário, do controle a posteriori, é preponderantemente preventiva.

4 O PODER CAUTELAR DOS TRIBUNAIS DE CONTAS PARA A SUSPENSÃO DE LICITAÇÕES

Fixado o entendimento de que os Tribunais de Contas, seguindo critérios de materialidade e relevância, podem examinar processos licitatórios de forma preventiva, convém enfatizar, na abertura deste capítulo, que o exercício da função cautelar na seara judicial não se limita às medidas típicas expressamente nominadas pela legislação. Assim, alcança, também, o denominado poder geral de cautela, que, na visão de Neves (2017, p. 545), pode ser definido como o generalizado poder estatal de evitar, no caso concreto, que o tempo necessário para a concessão da tutela definitiva gere a ineficácia dessa tutela. Na mesma linha, Theodoro Júnior (2010), assevera que a intenção da lei, ao criar o poder geral de cautela, é afastar qualquer situação de perigo capaz de tornar inútil e ineficaz o processo.

Já no âmbito administrativo do controle externo da gestão pública, o exercício desse poder cautelar decorre das competências constitucionalmente reservadas aos Tribunais de Contas para fiscalizarem licitações e contratos administrativos, nos termos dos arts. 71, IX e X, e 75 da CF. Dando concretude a esse comando constitucional, no âmbito federal, o art. 45, § 1º, I, Lei nº 8443/1992 (BRASIL, 1992) prevê a possiblidade de o TCU sustar o ato impugnado se o órgão ou entidade não adotar as medidas corretivas determinadas. Na mesma linha, o art. 276 do Regimento Interno do TCU (BRASIL, 2011) prevê expressamente a concessão de medida cautelar desde que presentes os pressupostos necessários à decisão de urgência.

Apesar da expressa previsão legal para o controle preventivo de licitações ou regimental para a expedição de medida cautelar suspensiva de certames licitatórios, a matéria acabou se tornando controversa. Em linha de divergência, Di Pietro (2013) objeta que a sustação cautelar do ato subverteria a ordem procedimental prevista no inciso X do art. 71 da Constituição. No mesmo norte, Carvalho Filho (2018, posição 1154) obtempera que, por se tratar de providência gravíssima na relação entre os Poderes, a sustação de atos de outros órgãos só se legitima após decorrido o prazo em que foi recomendada a superação da ilegalidade.

Por outro lado, Sundfeld e Câmara (2011), após traçarem uma distinção entre o poder de sustar e o de anular atos administrativos, reconheceram o poder cautelar constitucionalmente concedido ao Tribunal de Contas apenas para a sustação (não, portanto, para a anulação), a fim de evitar a ocorrência de lesão causada ao interesse público pelos efeitos de ato supostamente irregular. Willeman (2020, p. 266) acompanha esse entendimento:

Com fundamento no poder geral de cautela, admite-se, tranquilamente, que os Tribunais de Contas suspendam a realização de licitações, sustem o pagamento de parcelas remuneratórias irregulares a servidores ativos ou inativos e declarem a indisponibilidade de bens de responsáveis para assegurar o ressarcimento de dano ao erário, enfim, admite-se que adotem providências, em cognição sumária, que podem interferir diretamente na atividade administrativa, caracterizando manifestação de poder de veto ou obstrução. (WILLEMAN, 2020, p. 266).

Em sede jurisprudencial, a matéria restou pacificada pelo STF de forma a admitir, na espécie, o exercício do poder cautelar pelos Tribunais de Contas para suspender procedimentos licitatórios, conforme se vê na ementa de acórdão proferido, entre outros, no MS 24.510/DF:

PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. IMPUGNAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TCU. CAUTELARES. CONTRADITÓRIO. AUSÊNCIA DE INSTRUÇÃO.

1- Os participantes de licitação têm direito à fiel observância do procedimento estabelecido na lei e podem impugná-lo administrativa ou judicialmente. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada.

2- Inexistência de direito líquido e certo. O Tribunal de Contas da União tem competência para fiscalizar procedimentos de licitação, determinar suspensão cautelar (artigos 4º e 113, § 1º e 2º da Lei nº 8.666/93), examinar editais de licitação publicados e, nos termos do art. 276 do seu Regimento Interno, possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões).

3- A decisão encontra-se fundamentada nos documentos acostados aos autos da Representação e na legislação aplicável.

4- Violação ao contraditório e falta de instrução não caracterizadas. Denegada a ordem. (BRASIL, 2004).

Ao examinar os votos proferidos nesse julgamento, resta claro que o STF aplicou ao caso a teoria norte-americana dos poderes implícitos para reconhecer não ser exaustivo o rol de competências constitucionalmente atribuídas ao TCU. Nesse sentido, ao acompanhar a maioria, o Ministro Celso de Mello assim se manifestou:

[…] a atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas cautelares vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou iminente, ao erário público.

[…]

Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos.[…] (BRASIL, 2004).

Dessa forma, o STF reconheceu a possibilidade implícita de utilização do poder cautelar pelos Tribunais de Contas para evitar o prosseguimento de licitações eivadas de vícios passíveis de macular não somente a lisura do certame, mas também de gerar contratações ilegais ou antieconômicas. Isso porque as falhas comumente encontradas em instrumentos convocatórios, a exemplo da restrição à ampla competividade de certames e dos orçamentos com sobrepreço, podem violar a isonomia entre os licitantes e causar uma contratação prejudicial ao interesse público, inclusive, abrindo, brechas para a prática de corrupção.

Por derradeiro, com o advento da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, esse quadro favorável ao manejo do poder geral de cautela pelos Tribunais de Contas foi reforçado. Tanto isso é verdade que o art. 171, §§ 1º a 4º, da Lei nº 14.132/2021 (BRASIL, 2021) prevê expressamente a possibilidade de adoção de medidas cautelares pelas Cortes de Contas, determinando a suspensão de certames licitatórios. Além disso, encampando a preocupação com a observância ao princípio do devido processo legal, a nova lei criou um rito processual para a concessão de medidas de urgência, a fim de prever a necessidade de fundamentação da decisão cautelar, bem assim de fixar prazos para manifestação processual do Tribunal de Contas e do órgão ou entidade interessado(a) no processo.

5 CONCLUSÃO

Como visto, os Tribunais de Contas, órgãos públicos especializados e independentes que prestam auxílio técnico ao Poder Legislativo na fiscalização da atividade financeira do Estado, podem exercer o controle concomitante de licitações e contratos administrativos. Nessa seara, embora não se trate de controle prévio propriamente dito, as Cortes de Contas atuam de forma preventiva, podendo, assim, requisitar casuisticamente editais para exame.

Na pesquisa empreendida, restou assente também que, a despeito de certa controvérsia doutrinária, os Tribunais de Contas podem fazer uso do poder geral de cautela para suspender procedimentos licitatórios. Tal conclusão, conforme demonstrado no decorrer do trabalho, decorre da jurisprudência do STF, que, diante da ausência de expressa outorga constitucional de competência ao TCU para o exercício desse poder, reconheceu que este órgão possui poderes implícitos para sustar tais procedimentos a fim de assegurar a efetividade de suas futuras deliberações. Por fim, as normas extraídas do art. 171, §§ 1º a 4º, da Lei nº 14.132/2021 convergem com o entendimento do STF, uma vez que, ao inovarem a ordem jurídica, concedem ao TCU, de forma expressa, o poder de suspender licitações de forma cautelar.

Diante do exposto, espera-se que o presente trabalho possa ter trazido alguma contribuição para o acompanhamento da matéria. Isso porque, além da relevância prática do controle preventivo de licitações para a preservação do interesse público, existem outros campos a serem examinados de forma mais minudente em futuras pesquisas, especialmente após o advento da Lei nº 14.133/2021, que deverá gerar inúmeras mudanças na forma como a Administração Pública se relaciona com licitantes, contratados e a sociedade.

REFERÊNCIAS

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  1. Graduado em Direito, auditor de controle externo, advogado.
  2. O perfil das Cortes de Contas encontra assento constitucional. Mais precisamente, o poder constituinte originário destinou um capítulo à fiscalização contábil, financeira e orçamentária, nos arts. 70 a 75 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Por meio de tais dispositivos, o Congresso Nacional, com o apoio do Tribunal de Contas da União, exerce a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, mediante controle externo. As atribuições e as competências do Tribunal de Contas da União alcançam, por simetria, também as Cortes de Contas dos entes subnacionais.
  3. O artigo 75 da Constituição Federal dispõe que as normas estabelecidas na Seção IX (Da Fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária) são aplicáveis, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Além disso, o mesmo dispositivo delega às Constituições estaduais dispor sobre os Tribunais de Contas respectivos, definindo apenas que serão compostos por sete Conselheiros.
  4. No Distrito Federal, o controle externo é exercido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal com o auxílio do Tribunal de Contas do Distrito Federal.
  5. Além do TCU, responsável no âmbito federal, exercem atividades de fiscalização os seguintes órgãos de controle externo: a) Tribunais de Contas dos Estados, responsáveis pelos respectivos estados e pelos Municípios que não tiverem Tribunais de Contas dos Municípios nem Tribunais de Contas Municipais; b) Tribunais de Contas dos Municípios (Bahia, Ceará, Pará e Goiás), responsáveis pelas contas dos Municípios dos respectivos Estados; c) Tribunais de Contas do Município (São Paulo e Rio de Janeiro), responsáveis pelas contas dos respectivos Municípios; d) Tribunal de Contas do Distrito Federal, no âmbito desse ente federativo.
  6. Por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF), não é necessário, em regra, o esgotamento das vias administrativas para se recorrer ao Poder Judiciário.