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A Resolução Confea nº 1.116/2019 e a problemática do enquadramento de serviços de engenharia como comuns para fins de adoção da modalidade pregão.

POR: Victor Aguiar Jardim de Amorim

No dia 26/04/2019, o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA) aprovou a Resolução nº 1.116, restando “convencionado”, de forma expressa, que as obras e serviços de engenharia são, necessariamente, “serviços técnicos especializados”[1].

A Resolução nº 1.116/2019 constitui o ápice da “luta” do CONFEA e das demais entidades e organizações na área de construção civil – incluindo o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) – para coibir a utilização da modalidade pregão, regida pela Lei nº 10.520/2002, nas contratações públicas de serviços enquadrados como de “engenharia”. Isso porque, de acordo com a Lei nº 10.520/2002, poderá ser adotada a modalidade pregão para a aquisição de bens e a contratação de serviços considerados “comuns”.

Tal propósito fica ainda mais claro quando, nos “considerandos” da resolução, o CONFEA vaticina: “os padrões de desempenho e qualidade dos serviços e obras de Engenharia e de Agronomia, por serem objeto de soluções específicas e tecnicamente complexas, não podem ser definidos a partir de especificações usuais de mercado, carecendo de capacidade técnica intrínseca apenas aos profissionais legalmente habilitados e com as devidas atribuições”.

Nesse sentido, o CONFEA busca, em termos conceituais, inviabilizar, de antemão, o eventual enquadramento de um serviço de engenharia como “comum”, conforme dicção do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/2002, segundo o qual, “consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado”.

Na realidade, a posição do Conselho, ainda mais enfática, havia sido materializada na Decisão Plenária nº 365, de 25/04/2014: “os serviços de engenharia e agronomia que exigem habilitação legal para sua elaboração, com a obrigatoriedade de emissão da devida ART perante o Crea, jamais poderão ser classificados como ‘serviços comuns'”[2].

Ora, a partir de uma visão holística do sistema concorrencial público no Brasil, é preciso pontuar que padece de consistência a premissa do CONFEA segundo a qual uma atividade submetida, por lei, à responsabilidade técnica de uma determinada profissão ou categoria profissional jamais poderá ser adjetivada como “comum”.

O enquadramento de um bem ou serviço como “comum” para fins de utilização da modalidade pregão tem como parâmetro legal os conceitos contidos no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/2002, quais sejam “padrões de desempenho e qualidade objetivamente definidos pelo edital” e “especificações usuais no mercado”.

Pela dicção da Lei nº 10.520/2002, não há uma antinomia intrínseca entre bens e serviços “comuns” e “complexos”. A perspectiva de adjetivação do objeto da contratação deve ser pautada sob a ótica do mercado relevante. Afinal, ainda que ostente características complexas de execução e que demande o acompanhamento de um responsável técnico detentor de qualificação profissional específica, tal serviço será considerado como “comum” se houver, por parte do mercado relevante, pleno domínio das técnicas de sua realização, permitindo uma proposição objetiva e padronizada de execução do objeto. É esse o entendimento que se extrai da expressão “especificações usuais de mercado” utilizada no parágrafo único do art. 2º da Lei nº 10.520/2002.

Na linha do que já resta assentado pelo Tribunal de Contas da União, “a complexidade do serviço não é o fator decisivo para inseri-lo, ou não, no conceito de ‘serviço comum’, mas sim o domínio do mercado sobre o objeto licitado. Caso apresente características padronizadas (de desempenho e de qualidade) e se encontre disponível, a qualquer tempo, em um mercado próprio, o serviço pode ser classificado como serviço comum […] ‘bem ou serviço comum’ deve ser entendido como aquele que detém características padronizadas, identificável por denominação usual no mercado. Portanto, a noção de ‘comum’ não está vinculada à estrutura simples de um bem ou de um serviço. Do mesmo modo, a estrutura complexa também não é razão bastante, por si só, para retirar a qualificação de ‘bem ou serviço comum’”[3].

Ademais, para o adequado enfrentamento da questão, não se pode olvidar o contexto de incidência e o objetivo precípuo da Lei nº 10.520/2002: possibilitar a adoção de um rito procedimental mais eficaz, célere e vantajoso para a Administração na contratação de bens e serviços, sem descurar da segurança e qualidade da execução do objeto.

Para tanto, considerando ser o “menor preço” o critério de julgamento do pregão (art. 4º, X, da Lei nº 10.520/2002), somente será possível a adoção da referida modalidade se as especificações do bem ou do serviço, dada a maturidade do mercado relevante (ainda que especializado ou com universo de players reduzido), forem passíveis de incorporação, em disposições objetivas e padronizadas, no edital do certame. Ou seja, apenas em tal contexto, no qual se poderá mensurar com objetividade e segurança o resultado final da futura contratação, é que será adequado empreender uma disputa concorrencial tendo como critério o “menor preço”. 

A seguir a premissa do CONFEA plasmada nos considerandos da Resolução nº 1.116/2019, nenhum serviço, cujas atividades preponderantes sejam fixadas como privativas de determinadas profissões, poderia ser enquadrado como “comum”. Em assim sendo, a contratação de serviços para condicionamento físico de membros de uma Guarda Municipal, por exemplo, não poderia ser contratado por pregão, já que tal atividade é privativa do profissional de educação física. Da mesma forma, seria inviável a utilização do pregão para a contratação de serviço de preparo e fornecimento de refeições, de acordo com cardápio pré-estabelecido, já que tal atividade é privativa do profissional de nutrição.  Ou então do serviço de limpeza e higienização de dutos de ventilação de ar, porquanto tal atividade é privativa do profissional de biologia ou química. E, também, o serviço de realização de exames laboratoriais específicos, tendo em vista que tal atividade é privativa do profissional de biomedicina. Enfim, cumpre questionar, por qual razão então haveria a inviabilidade do pregão apenas para os serviços de engenharia?

Ora, a partir da análise feita dos pregões realizados pelo próprio CONFEA, observa-se que a modalidade foi utilizada, em diversos casos, para contratação de objetos que envolvem atividades privativas de determinadas profissões, a saber: Pregões Eletrônicos nº 003/2019 (fornecimento e aplicação de vacinas[4]) e nº 004/2019 (serviços de auditoria externa independente[5]). Da mesma forma, destacam-se os seguintes procedimentos licitatórios realizados pelo CAU: Pregões Eletrônicos nº 18/2016 (execução de Serviços Técnicos Especializados em Ginástica Laboral[6]), nº 23/2016 (serviços de assessoria contábil e consultoria em geral para execução dos trabalhos de análise e revisão das Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público e emissão de pareceres orçamentário-contábeis[7]) e nº 19/2016 (manutenção preventiva e corretiva em sistema de ar-condicionado[8]).

Por conseguinte – e em consonância com o entendimento “interno” do CONFEA e a CAU -, resta assentado que o fato de as atividades compreendidas no objeto da contratação serem estabelecidas, por lei, como privativas de determinadas profissões, não transforma a essência da atividade propriamente dita, não obstando, assim, a possibilidade de se definir seu conteúdo objetivamente, a partir de “especificações usuais” de amplo domínio pelo mercado relevante.

Sob o ponto de vista normativo, um serviço pode ser enquadrado como “comum” se presentes os pressupostos do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/2002, ainda que as atividades contempladas no serviço sejam, por lei, condicionadas à supervisão técnica de determinada profissão. Em observância a tais premissas, em 28/04/2010, o TCU, ao consolidar seus entendimentos, aprovou o enunciado da Súmula nº 257, nos seguintes termos: “o uso do pregão nas contratações de serviços comuns de engenharia encontra amparo na Lei nº 10.520/2002”.

Fixada a baliza hermenêutica, a própria Corte de Contas passou, em julgados pontuais, a entender como “obrigatória” a adoção do pregão, preferencialmente em sua forma eletrônica, para contratação de serviços de engenharia considerados “comuns”, a ponto de penalizar gestores públicos por promoverem contrações valendo-se de outras modalidades licitatórias[9]. Nos termos do voto do Min. José Múcio Monteiro no bojo do Acórdão nº 841/2010-Plenário, pelo qual foi aprovado o enunciado da mencionada Súmula nº 257, “na linha do entendimento do Tribunal, uma vez devidamente caracterizado pelo gestor o serviço de engenharia que seja comum, há que se utilizar o pregão, um instrumento de eficácia para a Administração Pública, capaz de propiciar a ampliação da concorrência e, portanto, o recebimento de melhores ofertas”.

O enquadramento do serviço de engenharia como “comum” jamais será feito a priori, dependendo, sempre, das características e do contexto do caso concreto. Daí o destaque para a fase de planejamento da contratação, em especial, a realização de estudos preliminares para uma adequada prospecção de mercado, a fim de aferir a existência de um domínio, por parte do mercado relevante, das técnicas de realização e padrões de qualidade do serviço. Portanto, o enquadramento do serviço de engenharia na acepção do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/2002 será feita conforme a dialética do processo, mediante um juízo técnico do agente público especializado.

Outrossim, da mesma forma que se mostra inviável a edição de um ato normativo estabelecendo que determinados serviços de engenharia são “comuns”, não se pode admitir a edição de uma resolução que exclua, de plano, a possibilidade de enquadramento de um serviço como “comum”, seja ele qual for. Nesse contexto, em uma dimensão simbólica, a Resolução CONFEA nº 1.116/2019 causa considerável constrangimento aos gestores públicos, porquanto obscurece um panorama paulatinamente delineado pela jurisprudência do TCU, não contribuindo em nada para um debate substancialmente dialético da questão. Afinal, como irão se portar os engenheiros e arquitetos integrantes da Administração quanto instados a se manifestar nos processos de contratação se determinado serviço de engenharia poderá não ser realizado mediante pregão?

A partir da indigitada resolução, alguns Conselhos Regionais de Engenharia, chegaram a noticiar que “obras e serviços de engenharia não podem ser licitadas via pregão”[10]… Ora, em atenção à hierarquia normativa plasmada no Estado Democrático de Direito, como admitir que um ato normativo secundário, editado por um Conselho Profissional, tenha o condão de, por si só, restringir o alcance de uma legítima interpretação do parágrafo único do art. 1º da Lei nº 10.520/2002, extrapolando sua competência de regulação e fiscalização profissional e vinculando a própria Administração?

Vale, ainda, contextualizar o surgimento da Resolução CONFEA nº 1.116/2019: o Governo Federal, em breve, irá promover a edição de novo decreto regulamentar do pregão na forma eletrônica, que, conforme art. 1º da minuta[11] disponibilizada pela Secretaria de Gestão do Ministério da Economia em audiência pública realizada em Brasília/DF no dia 04/04/2019[12], incorpora normativamente o entendimento sufragado pelo TCU na Súmula nº 257.

Assim, o CONFEA, com o movimento corporativo que culminou na Resolução nº 1.116/2019, parece pretender deslegitimar a ação do Governo Federal consistente em conferir aos gestores públicos a devida segurança na contratação de serviços de engenharia a partir de um fundamento normativo que lastreie a adequação do pregão eletrônico quando o objeto for adequadamente enquadrado como “comum”.

Ao centrar suas baterias contra o pregão, o CONFEA, o CAU e as das demais entidades e organizações na área de construção civil lastreiam suas críticas apenas no suposto aviltamento da qualidade dos serviços decorrente da redução dos preços promovida pela sistemática de seleção de propostas no pregão: menor preço aliado à possibilidade de lances[13]. Ora, em sendo assim, por dever de coerência, tais entidades deveriam ser contrárias à utilização do critério exclusivo de “menor preço” para toda a contratação de obra e de serviço de engenharia, independentemente da modalidade licitatória. Mas não se observam críticas na realização de concorrência, do tipo “menor preço”, para contratar objetos da área de engenharia.

E há, por fim, que se evidenciar outros importantes aspectos que incidem sobre a celeuma: a má qualidade das obras e dos serviços de engenharia inexoravelmente está relacionada como a redução dos preços promovida pela forma de disputa (“menor preço”) ou decorre de falhas no planejamento da licitação e/ou na fiscalização da execução? E quanto à responsabilidade dos Conselhos pela fiscalização da idoneidade e verificação da adequação técnica das empresas e profissionais da área de arquitetura e urbanismo? Há uma atuação sistemática do CONFEA e CAU para coibir a prática de preços abaixo dos valores referenciais de mercado e afastar empresas e profissionais que promovam a execução de serviços abaixo da qualidade ou fora dos padrões técnicos adequados?

Enfim, há que se fazer a devida ponderação dos aspectos incidentes sobra a complexa questão, sob pena de, ao demonizarmos o uso do pregão para serviços de engenharia, jogarmos a criança fora junto com a água suja…


[1] http://www.in.gov.br/web/dou/-/resolu%C3%87%C3%83o-n%C2%BA-1.116-de-26-de-abril-de-2019-86523311.

[2] Inteiro teor disponível em: <http://normativos.confea.org.br/ementas/visualiza.asp?idEmenta=54004&idTiposEmentas=6&Numero=365&AnoIni=&AnoFim=&PalavraChave=&buscarem=conteudo&vigente=>.

[3] Trecho do voto do Min. Benjamin Zylmer no Acórdão 1.046/2014-Plenário.

[4] Trata-se de atividade a ser desempenhada sob a responsabilidade técnica dos profissionais da área de Enfermagem, conforme estabelece a Lei nº 7.498/1986 e o Decreto Federal nº 94.406/1987.

[5] O próprio edital do CONFEA, em seu item 10.14, exige, como condição de habilitação, a “Comprovação de registro no Cadastro Nacional de Auditores Independentes (CNAI)”, que se trata de um cadastro destinado aos profissionais registrados na categoria de Contador.

[6] De acordo com o item 5.2 do Anexo 1 do edital, é exigido que os profissionais responsáveis pela execução dos serviços possuam graduação em Educação Física ou Fisioterapia, com registro válido nos respectivos Conselhos Profissionais.

[7] Conforme exigência constante do item 5.1.1 do Anexo 1 do edital, os serviços deverão ser realizados por “2 (dois) profissionais Contadores”.

[8] Consoante estabelece o item 12.2.3, os serviços deverão ser realizados sob a supervisão dos responsáveis técnicos devidamente registrados no CREA.

[9] Nesse sentido, vide recente Acórdão nº 713/2019-Plenário e, ainda, o enunciado do Acórdão nº 505/2018-Plenário: “Na aquisição de serviços comuns de engenharia, a Administração deve utilizar obrigatoriamente a modalidade pregão, preferencialmente em sua forma eletrônica, devendo justificar a inviabilidade dessa forma caso adote o pregão presencial”.

[10] http://www.crea-rn.org.br/site_crearn/noticias/artigo/532

[11] Disponível em: <https://www.comprasgovernamentais.gov.br/images/conteudo/Minuta-Decreto-Prego_audincia.pdf>

[12] Para informações sobre a audiência pública, vide: <https://www.comprasgovernamentais.gov.br/index.php/noticias/1097-segunda-audiencia-publica-pregao>.

[13] Vide, para tanto, artigo conjunto dos Presidentes do CONFEA, CAU e SINAENCO, datado de 12/02/2019: <https://www.caubr.gov.br/artigo-em Vide, para tanto, artigo conjunto dos Presidentes do CONFEA, CAU e SINAENCO, datado de 12/02/2019: <https://www.caubr.gov.br/artigo-em-defesa-da-qualidade-e-da-seguranca-das-obras-publicas/>.-defesa-da-qualidade-e-da-seguranca-das-obras-publicas/>.