Por: Leandro Bastos Nunes
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo traçar um panorama do entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação ao crime de evasão de divisas e a tipificação dos delitos envolvendo a utilização de bitcoin. A metodologia envolve o estudo de casos concretos e conclusões derivadas das respectivas análises das decisões judiciais.
Palavras chave: evasão de divisas; depósito; bitcoin; Superior Tribunal de Justiça
INTRODUÇÃO
A expressão “depósito” revela a ideia do local onde se pode armazenar algo. Na hipótese do sistema financeiro, deve ser entendido como o lugar, no qual o dinheiro é guardado para fins de posterior utilização ou formação de reservas financeiras.
Com efeito, quando se deposita um valor para fins de que posteriormente seja investido em alguma aplicação financeira (fundo de investimentos, ações, debêntures), o montante não deixa de permanecer depositado no sistema financeiro, não perdendo a sua característica de “depósito”.
No que se refere ao sistema bancário, o depositante é o titular do dinheiro correspondente a cada quantia depositada. Cada uma das formas de administrar os valores detém características próprias, dependendo da quantidade de dinheiro, tempo em que é administrado pelo banco, e sua finalidade. O sistema bancário oferece várias opções de depósitos para cada tipo de cliente, e tais modalidades não desnaturam a ideia original ligada ao fato de o montante financeiro estar armazenado em algum local (conta bancária ou algum tipo de aplicação financeira).
De outra parte, indaga-se se a ausência de declaração de cotas de fundo de investimentos (no exterior) configuraria a modalidade do crime de “evasão depósito” (última parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86.
CASUÍSTICA JURISPRUDENCIAL:
A decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, ao analisar a hipótese de manutenção de depósitos não declarados no exterior — modalidade do delito de evasão de divisas, prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 22, da Lei dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, efetivou a interpretação teleológica da norma, conferindo proteção ampla e irrestrita ao bem jurídico tutelado (proteção das reservas cambiais).
O posicionamento foi adotado no julgamento do Recurso em Sentido Estrito do Ministério Público Federal, em face de decisão de 1º grau, que rejeitou denúncia em desfavor de investidores que subscreveram cotas do “Opportunity Fund”, nas Ilhas Cayman, em decorrência da “Operação Satiagraha”.
O TRF-3ª Região concedeu provimento ao recurso, assentando que a incriminação da manutenção de depósitos não declarados no exterior tutelaria tanto o erário (interesse do fisco), quanto as reservas cambiais do país, razão pela qual exigir-se-ia declaração ao Banco Central e à Receita Federal.
Nesse sentido, decidiu o Egrégio Tribunal:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. MANUTENÇÃO DE COTAS DE FUNDOS DE INVESTIMENTO NO EXTERIOR SEM DECLARAÇÃO ÀS AUTORIDADES COMPETENTES. CONDUTA, EM TESE, SUBSUMÍVEL AO TIPO PENAL DO ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO, PARTE FINAL, DA LEI 7.492/86. PRESCRIÇÃO VIRTUAL OU ANTECIPADA. IMPOSSIBILIDADE. PATENTE O INTERESSE DE AGIR POR PARTE DA ACUSAÇÃO. RECURSO DO MPF PROVIDO. DENÚNCIA RECEBIDA. 1- Segundo se extrai da denúncia, em 21.07.1997, o Recorrido subscreveu cotas do OPPORTUNITY FUND, sediado nas Ilhas Cayman, no valor de US$ 180.900,00, resgatando em 23.10.2003, a quantia de US$ 175.852,05. Consta da denúncia, ademais, que, de acordo com informações encaminhadas pela Receita Federal e pelo Banco Central, não constariam declarações de capitais brasileiros no exterior, no período de 1997 a 2003, em nome do Recorrido. 2- Conforme entendimento da doutrina e da jurisprudência, o tão só fato de o Recorrido não ter declarado as cotas do OPPORTUNITY FUND à Receita Federal já configuraria, em tese, o crime de evasão de divisas. 3- Por sua vez, não é pacífico o entendimento de que as cotas do OPPORTUNITY FUND não poderiam ser consideradas equivalentes à manutenção de depósitos no exterior, haja vista que esse E. Tribunal, nos autos da Apelação Criminal n. º 0008025-20.2007.403.6181, manteve a condenação pelo crime de evasão de divisas justamente pelo fato de o réu naqueles autos ter mantido dinheiro aplicado em fundos no exterior não declarados às autoridades competentes. 4- Finalmente, também a alegada falta justa causa para a ação penal diante da iminência da prescrição pela pena máxima abstratamente cominada ao delito não constitui óbice ao recebimento da denúncia, eis que o ordenamento jurídico pátrio repudia a denominada prescrição virtual ou prescrição antecipada. Outra, aliás, não é a conclusão que se depreende da Súmula n.º 438 do Superior Tribunal de Justiça. 5- Recurso do MPF provido. Denúncia recebida (TRF- 3ª Região, SER 00115573120094036181, 3ª Turma, Rel. Paulo Fonte, DJF3 31/03/2015)
No caso concreto, assentou o Egrégio Tribunal que “o tão só fato de o Recorrido não ter declarado as cotas do OPPORTUNITY FUND à Receita Federal já configuraria, em tese, o crime de evasão de divisas”. O aresto menciona o caso de condenação por evasão de divisas de acusado, que manteve dinheiro aplicado em fundo no exterior, sem declaração às autoridades competentes.
Contudo, pensamos que a mera ausência de declaração à Receita não configura, por si só, o delito de evasão, e sim o de sonegação fiscal, na hipótese de incidir o crédito tributário definitivamente constituído, em razão das distintas objetividades jurídicas tuteladas (proteção das reservas cambiais e da função arrecadatória do Estado).
Nesse ponto, até dezembro de 2001 (quando foi publicada a Circular BACEN nº 3.071/2001), havia a obrigatoriedade de efetivação da declaração de ativos mantidos no exterior apenas à Receita Federal, conforme resolução nº 139/70 do Banco Central.
Outrossim, a partir de 07/12/2001, quando o BACEN passou a ser a repartição federal competente para receber as declarações de capitais brasileiros no exterior, a hipótese é de incidência do concurso real (material) de crimes (art. 69 do CPB), na seguinte forma hipotética: “X”, por intermédio do embarque em voo internacional, leva consigo a quantia de US$ 40.000,00 (quarenta mil dólares), e não preenche o formulário de declaração eletrônica de bens do viajante (e-DBV), logrando êxito na remessa dos respectivos valores a outro país.
Posteriormente, abre uma conta no exterior, deposita esse valor e complementa com outros US$ 70.000,00 (setenta mil dólares), perfazendo o total de US$110.000,00 (cento e dez mil dólares). No ano seguinte, não procede à efetivação da declaração de capitais de brasileiros no exterior (DCBE), omitindo ao BACEN tais informações, e não lança os valores (oriundos de rendimentos tributários) na declaração anual de imposto de renda.
In casu, ter-se-iam duas condutas em contextos fáticos distintos – a primeira se consumaria na ausência de declaração do valor de US$ 110.000,00 (cento e dez mil dólares) ao BACEN, e a segunda na data do lançamento definitivo do crédito tributário.
O dever de informação das disponibilidades mantidas por brasileiros no exterior existe no ordenamento jurídico pátrio desde 1962, quando a Lei 4.131/62, em seu art. 17, previu que as pessoas físicas e jurídicas, domiciliadas ou com sede no Brasil, estariam obrigadas a declarar à extinta Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), na forma que fosse estabelecida pelo respectivo Conselho, os bens e valores que possuíssem no exterior, incluindo depósitos bancários.
A partir do ano 2001, coube ao BACEN efetivar o controle das reservas cambiais com exclusividade, tornando-se a “repartição federal competente” referida pelo parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 (Lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional-LSN).
Nesse sentido, preleciona Masi:
Desde 2001, porém, só pratica crime contra o Sistema Financeiro quem não declara ao BACEN, uma vez que o controle das reservas cambiais passou a ser tutelado normativamente com exclusividade por este órgão, que tornou-se, então a “repartição federal competente” a que faz referência o parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 (norma penal em branco) (https://www.conjur.com.br/2015-abr-26/carlo-velho-masi-omitir-receita-dinheiro-exterior-nao-evasao-divisas)
A norma penal faz alusão à manutenção de “depósitos não declarados”. A nosso ver, o legislador, ao tipificar a expressão “depósito” , buscou abarcar todo tipo de investimento que fosse convertido em valor monetário (dinheiro), incluindo ações, cotas de fundo de investimentos, debêntures, entre outros.
A mens legis deve ser efetivada, em virtude dos métodos das interpretações extensiva e teleológica, haja vista que a finalidade do legislador foi a de proteger as reservas cambiais. Com efeito, afigura-se intuitivo o fato de que, ainda que as cotas do fundo de investimentos estejam no exterior sem previsão de imediata transferência à conta corrente, a aludida situação possibilita a sua disponibilidade imediata para serem convertidas em pecúnia, conforme os ditames da vontade do seu titular (solicitação de resgate, venda no mercado de ações, etc).
Nesse sentido, a interpretação teleológica é um método de interpretação que tem por critério extrair a finalidade da norma. Conforme a respectiva exegese, ao se interpretar um dispositivo legal, deve-se levar em conta as exigências econômicas e sociais, conformando-se aos princípios da justiça e do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito).
Por seu turno, a interpretação extensiva é aquela que amplia o sentido ou alcance da norma (” a lei disse menos do que queria dizer”), sendo admitida no direito penal, desde que não haja desvirtuamento da mens legis (espírito da lei), e tem por finalidade conferir lógica na interpretação do ordenamento jurídico.
Nesse sentido, colaciona-se a seguinte ementa de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF):
“CONSTITUCIONAL E PENAL. ACESSÓRIOS DE CELULAR APREENDIDOS NO AMBIENTE CARCERÁRIO. FALTA GRAVE CARACTERIZADA. INTELIGÊNCIA AO ART. 50, VII, DA LEI 7.210/84, COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA LEI 11. 466/2007. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCIPIO DA RESERVA LEGAL. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE. 1. Pratica infração grave, na forma prevista no art. 50, VII, da Lei 7.210/84, com as alterações introduzidas pela Lei 11.466/2007, o condenado à pena privativa de liberdade que é flagrado na posse de acessórios de aparelhos celulares em unidade prisional. 2. A interpretação extensiva no direito penal é vedada apenas naquelas situações em que se identifica um desvirtuamento na mens legis. 3. A punição imposta ao condenado por falta grave acarreta a perda dos dias remidos, conforme previsto no art. 127 da Lei 7.210/84 e na Súmula Vinculante nº 9, e a conseqüente interrupção do lapso exigido para a progressão de regime. 4. Negar provimento ao recurso.” (STF RHC 106481, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08/02/2011).
Com efeito, ao analisar o recurso interposto em face da aludida decisão do TRF- 3º Região, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encampando entendimento defendido em nossa obra, decidiu na seguinte forma ( grifos acrescidos):
“(…) manutenção de depósito não declarado à repartição federal competente no exterior. Para fins de interpretação do termo “depósito” deve-se considerar o fim a que se destina a norma, pois visa à proteção do Sistema Financeiro Nacional – SFN. A lei não restringiu (não seria melhor a modalidade de) o local de depósito no exterior. Assim, não deve ser considerado apenas o depósito em conta bancária no exterior, mas também o valor depositado em aplicação financeira no exterior, em razão da disponibilidade da moeda e do interesse do SFN (…) Ainda, em manifestação mais recente, a doutrina de Leandro Bastos Nunes que, colacionando o acórdão do Tribunal a quo, entendeu por escorreita uma interpretação teleológica do termo “depósito”, cito (in Evasão de Divisas, 2ª Edição revista e ampliada – Salvador: Juspodivm. 2017. fls. 141/142): “A norma penal faz alusão à manutenção de “depósitos não declarados”. A nosso ver, o legislador, ao tipificar a expressão “depósito’, buscou abarcar todo tipo de investimento que fosse convertido em valor monetário (dinheiro), incluindo ações, cotas de fundo de investimentos, debêntures, entre outros. Nesse sentido, é cediço que, quem faz este tipo de aplicação, tem por escopo transformá-lo em pecúnia, assim que puder, detendo a disponibilidade imediata para seu uso financeiro. A mens legis deve ser efetivada, em virtude da técnica de interpretação sistemática e teleológica, haja vista que a finalidade do legislador foi a de proteger as reservas cambiais. Com efeito, afigura-se intuitivo o fato de que, ainda que as cotas do fundo de investimentos estejam no exterior sem previsão de imediata transferência à conta corrente, a aludida situação possibilita a sua disponibilidade imediata para serem convertidas em pecúnia, conforme os ditames da vontade do seu titular (solicitação de resgate, venda no mercado de ações, etc.). Nesse sentido, a interpretação teleológica é um método de interpretação legal que tem por critério extrair a finalidade da norma. Conforme a respectiva exegese, ao se interpretar um dispositivo legal, deve-se levar em conta as exigências econômicas e sociais, conformando-se aos princípios da justiça e ao bem comum (art. 5° da Lei de introdução às normas do Direito). O elemento teleológico pode ser explicado como uma maneira de desvendar o sentido da lei, descobrindo suas finalidades e objetivos. A palavra “teleologia’ significa “a doutrina acerca das causas finais’: a qual busca explicar as coisas pelos fins a que são destinadas. As finalidades de uma lei devem sofrer alterações ao decorrer dos tempos, em virtude da evolução da sociedade, cabendo ao intérprete revelar as novas finalidades, fazendo-o dentro de um trabalho sério e responsável, com observâncias de princípios do próprio ordenamento jurídico. De outro lado, vale registrar que os depósitos podem ter origem no exterior, ou seja, não é necessária a remessa no Brasil e a posterior manutenção em outro país, podendo, para configurar o delito, incidir, por exemplo, na hipótese da respectiva transferência de uma conta no exterior para outra em outro país. Deve-se incluir no conceito de depósito qualquer tipo de investimento no exterior aplicado no sistema financeiro, tais como, ações, fundos ou cotas de fundos de investimentos (incluindo previdência privada), haja vista o escopo da norma em tutelar o controle das divisas situadas no exterior, abrangendo os respectivos depósitos oriundos de quaisquer tipos de aplicações financeiras, com base na hermenêutica da interpretação sistemática e teleológica.” Portanto, no caso em tela, a suposta aplicação financeira realizada por meio da aquisição de cotas do fundo de investimento Opportunity Fund no exterior e não declarada à autoridade competente preenche a hipótese normativa do art. 22, parágrafo único, parte final, da Lei n. 7.492/86. Ressalte-se que o BACEN, ainda na Circular 3.071 de 2001, já estabelecia que os valores dos ativos em moeda detidos no exterior deveriam ser declarados, conforme art. 1º e art. 2º (…) “ (STJ, 5ª Turma, Agravo em recurso especial n.º 774.523-SP, Rel. Joel Ilan Paciornik, j. 07/05/2019).
Vale registrar que os depósitos podem ter origem no exterior, ou seja, não é necessária a remessa no Brasil e a posterior manutenção no outro país, podendo, para configuração do delito, incidir, por exemplo, na hipótese da respectiva transferência de uma conta no exterior para outra em outro país.
REGULAMENTAÇÃO DO BITCOIN E SUA RELAÇÃO COM O CRIME DE EVASÃO DE DIVISAS:
As criptomoedas podem configurar uma espécie de meio de pagamento online, tendo surgido na década passada, e, durante muito tempo, ficou restrita ao ambiente dos empreendedores virtuais mais sofisticados, a ponto de paulatinamente ter conquistado adeptos e angariado espaço no mercado, resultando na atual preocupação gerada nos inúmeros representantes de Estado.
Com efeito, trata-se de uma moeda virtual e um meio de pagamento, que pode ser empregado para qualquer tipo de transação comercial, e já vem sendo utilizada nas transações (compra e venda) de moeda estrangeira em algumas casas de câmbio do Brasil (disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,casa-de-cambio-passa-a-aceitar-bitcoin-para-compra-de-dolar,70002817208).
Todavia, é uma moeda virtual ainda não reconhecida pelo Banco Central do Brasil, inexistindo o respectivo lastro, haja vista a ausência de correspondência a uma existência física em papel moeda equivalente, assim como pela impossibilidade de comprovação do seu efetivo valor, a teor do que consta no Comunicado Bacen n.º 31.379/2011 (disponível em C:\Users\Usuario\Documents\Comunicado n° 31.379 de 16_11_2017.html).
Indaga-se, porém, se a manutenção de valores superiores a US$ 100.000,00 (cem mil dólares) em bitcons configuraria o delito de evasão de divisas, na modalidade evasão imprópria?
Em relação ao tipo penal de evasão divisas previsto na Lei 7.492/86, cumpre descrevê-lo em sua íntegra:
Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:
Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.
Nesse ponto, enquanto o bitcoin não for regulamentado pelo CMN (Conselho Monetário Nacional) e/ou pelo BACEN, fica inviável cogitar, em tese, na tipificação como evasão de divisas propriamente dita (primeira parte do parágrafo único do artigo 22 da LSN) ou da modalidade evasão imprópria, porquanto não poderá ser classificado na condição de depósito, moeda ou divisa, por não estar vinculado a qualquer instituição financeira, e pelo fato de as operações não serem reconhecidas e regulamentadas pelos aludidos entes do sistema financeiro nacional.
Por outro lado, apenas na hipótese do crime do caput do art. 22 da Lei 7.492/86 é que se poderia cogitar, em princípio, da possibilidade de configuração do delito de evasão, quando a aquisição da criptomoeda for utilizada para fins de efetivação de contrato de câmbio ilegal, cujo objetivo seja a evasão de divisas (remessa dos valores para outro país, em desconformidade às regras do Banco Central), conforme se nota da análise da seguinte ementa de decisão oriunda do Superior Tribunal de Justiça:
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA FEDERAL. INVESTIGADO QUE ATUAVA COMO TRADER DE CRIPTOMOEDA (BITCOIN), OFERECENDO RENTABILIDADE FIXA AOS INVESTIDORES. INVESTIGAÇÃO INICIADA PARA APURAR OS CRIMES TIPIFICADOS NOS ARTS. 7º, II, DA LEI N. 7.492/1986, 1º DA LEI N. 9.613/1998 E 27-E DA LEI N. 6.385/1976. MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL QUE CONCLUIU PELA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE OUTROS CRIMES FEDERAIS (EVASÃO DE DIVISAS, SONEGAÇÃO FISCAL E MOVIMENTAÇÃO DE RECURSO OU VALOR PARALELAMENTE À CONTABILIDADE EXIGIDA PELA LEGISLAÇÃO). INEXISTÊNCIA. OPERAÇÃO QUE NÃO ESTÁ REGULADA PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO. BITCOIN QUE NÃO TEM NATUREZA DE MOEDA NEM VALOR MOBILIÁRIO. INFORMAÇÃO DO BANCO CENTRAL DO BRASIL (BCB) E DA COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS (CVM). INVESTIGAÇÃO QUE DEVE PROSSEGUIR, POR ORA, NA JUSTIÇA ESTADUAL, PARA APURAÇÃO DE OUTROS CRIMES, INCLUSIVE DE estelionato E CONTRA A ECONOMIA POPULAR. 1. A operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976. 2. Não há falar em competência federal decorrente da prática de crime de sonegação de tributo federal se, nos autos, não consta evidência de constituição definitiva do crédito tributário. 3. Em relação ao crime de evasão, é possível, em tese, que a negociação de criptomoeda seja utilizada como meio para a prática desse ilícito, desde que o agente adquira a moeda virtual como forma de efetivar operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país. No caso, os elementos dos autos, por ora, não indicam tal circunstância, sendo inviável concluir pela prática desse crime apenas com base em uma suposta inclusão de pessoa jurídica estrangeira no quadro societário da empresa investigada. 4. Quanto ao crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei n. 9.613/1998), a competência federal dependeria da prática de crime federal antecedente ou mesmo da conclusão de que a referida conduta teria atentado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas (art. 2º, III, a e b, da Lei n. 9.613/1998), circunstâncias não verificadas no caso. 5. Inexistindo indícios, por ora, da prática de crime de competência federal, o procedimento inquisitivo deve prosseguir na Justiça estadual, a fim de que se investigue a prática de outros ilícitos, inclusive estelionato e crime contra a economia popular. 6. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara de Embu das Artes/SP, o suscitado. (STJ, CC-161123, Rel. Sebastião Reis Junior, 3ª Seção, DJE 05/12/2018).
No mesmo sentido, é o que consta do Comunicado Bacen n° 31.379, de 16 de novembro de 2017:
“(…) 6. É importante ressaltar que as operações com moedas virtuais e com outros instrumentos conexos que impliquem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras não afastam a obrigatoriedade de se observar as normas cambiais, em especial a realização de transações exclusivamente por meio de instituições autorizadas pelo Banco Central do Brasil a operar no mercado de câmbio” (Disponível em C:\Users\Usuario\Documents\Comunicado n° 31.379 de 16_11_2017.html. Acesso: 12 de agosto de 2019)
No que se refere à conceituação das criptomoedas, leciona CARDONI:
“(…) essa criptomoeda ainda não foi conceituada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não sendo possível a sua equiparação à divisa. Além disso, foi demonstrado que o bitcoin não pode ser considerado uma moeda em razão das suas condições econômicas e também da legislação atual” ( CARDONI, p. 61).
Com efeito, as criptomoedas são criptografadas para garantir proteção e segurança, e o aludido valor monetário apenas trafega no universo virtual.
De forma similar a outros tipos de moedas, a criptomoeda pode ser utilizada para aquisição de bens e serviços, mas a sua principal vantagem é o fato de não estar atrelada a um determinado sistema bancário, tendo, ainda, como característica, a possibilidade de transferência via internet de baixo custo, porquanto inexiste a necessidade de pagamento das respectivas taxas inerentes às instituições financeiras tradicionais.
A criptografia de tais moedas é realizada por intermédio de uma série de códigos dotados de “chaves” de difíceis decodificações, tornando-a menos suscetíveis a invasões, por parte de hackers ou criminosos do mundo cibernético.
Contudo, isso não impede a configuração do eventual crime de lavagem de dinheiro (ocultação e/ou dissimulação de bens ou valores proveniente de infração penal antecedente), quando for comprovada a sua utilização para fins de ocultação ou dissimulação de ganhos oriundos de ilícitos penais.
Nesse ponto, leciona LEDRA RIBEIRO:
“(…) Inobstante a isso, o bitcoin ser considerado como bem imaterial não escusaria os seus operadores de desrespeitar regras referentes ao combate às fraudes e corrupção nos termos da lei 9.613/98. A depender das transações realizadas em bitcoin, por exemplo, as partes podem recair no crime de ocultação de bens, direitos e valores, ao “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”, nos termos do caput do art. 1º da mesma lei(…)”
No mesmo sentido, poder-se-á caracterizar o delito de sonegação fiscal, caso seja comprovada a omissão de declaração de bens ou valores no imposto de renda, resultando na omissão de renda auferida tributável, desde que constituído definitivamente o crédito tributário, por intermédio do lançamento fiscal a cargo da Receita.
Em relação à prevenção e repressão à sonegação fiscal, a Receita Federal emitiu um ato normativo por meio do qual tornou obrigatória a informação na declaração de imposto de renda do referido ativo financeiro, conforme se nota na instrução normativa RFB nº 1.888, de 3 de maio de 2019 , a qual institui e disciplinou a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), nos seguintes termos:
“Art. 1º Esta Instrução Normativa institui e disciplina a obrigatoriedade de prestação de informações relativas às operações realizadas com criptoativos à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).
(…)
Art. 6º Fica obrigada à prestação das informações a que se refere o art. 1º:
I – a exchange de criptoativos domiciliada para fins tributários no Brasil;
II – a pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil quando:
a) as operações forem realizadas em exchange domiciliada no exterior; ou
b) as operações não forem realizadas em exchange.
§ 1º No caso previsto no inciso II do caput, as informações deverão ser prestadas sempre que o valor mensal das operações, isolado ou conjuntamente, ultrapassar R$ 30.000,00 (trinta mil reais)”
Relativamente à submissão do lucro das transações à tributação pelo fisco, preleciona REVOREDO:
“A tributação dos ganhos obtidos com a alienação de criptomoedas Segundo a própria Receita Federal (tópico 607 do Documento de Perguntas e Respostas): “Os ganhos obtidos com a alienação de moedas virtuais (bitcoins, por exemplo) cujo total alienado no mês seja superior a R$ 35.000,00 são tributados, a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, e o recolhimento do imposto sobre a renda deve ser feito até o último dia útil do mês seguinte ao da transação”. Para isso, o contribuinte deve informar no GCAP o custo de aquisição e o valor de venda. O pagamento do DARF é até o final do mês subsequente”
Como se nota, a orientação da Receita Federal é no sentido de que a referida criptomoeda configura uma espécie de ativo financeiro, razão pela qual seria exigível o recolhimento de imposto sobre a renda a título de ganho de capital (https://www.conjur.com.br/2019-abr-15/opiniao-tributacao-operacoes-criptomoedas).
O Banco Central (BACEN) já se pronunciou em algumas oportunidades, manifestando o entendimento de que as criptomoedas ainda não foram regulamentadas, porquanto não seriam moedas fiduciárias, haja vista não possuírem natureza de meio de curso forçado para fins de transações financeiras.
De outro lado, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu, em março de 2020, a competência da Justiça Federal para julgar fatos relacionados à captação de recursos atrelados à especulação no mercado de criptomoedas, por intermédio de oferta pública de contrato coletivo de investimento com bitcoin, sem prévio registro de emissão na Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Segundo o respectivo julgado, cuja ementa segue abaixo transcrita, a oferta pública de contrato coletivo de investimento configura valor mobiliário previsto na Lei 6.385/76, submetendo os fatos às disposições da lei dos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei 7.492/1986), atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal, in verbis:
HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO EGYPTO. SUPOSTA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA. CASO QUE OSTENTA CONTORNOS DISTINTOS DO CC N. 161.123/SP (TERCEIRA SEÇÃO). DENÚNCIA OFERTADA, NA QUAL É NARRADA A EFETIVA OFERTA DE CONTRATO COLETIVO DE INVESTIMENTO ATRELADO À ESPECULAÇÃO NO MERCADO DE CRIPTOMOEDA. VALOR MOBILIÁRIO (ART 2º, IX, DA LEI N. 6.385/1976). INCIDÊNCIA DOS CRIMES PREVISTOS NA LEI N. 7.492/1986. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL (ART. 26 DA LEI N. 7.492/1986), INCLUSIVE PARA PROCESSAR OS DELITOS CONEXOS (SÚMULA 122/STJ). 1-A Terceira Seção desta Corte decidiu que a operação envolvendo compra ou venda de criptomoedas não encontra regulação no ordenamento jurídico pátrio, pois as moedas virtuais não são tidas pelo Banco Central do Brasil (BCB) como moeda, nem são consideradas como valor mobiliário pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não caracterizando sua negociação, por si só, os crimes tipificados nos arts. 7º, II, e 11, ambos da Lei n. 7.492/1986, nem mesmo o delito previsto no art. 27-E da Lei n. 6.385/1976 (CC n. 161.123/SP, DJe 5/12/2018).2- O incidente referenciado foi instaurado em inquérito (não havia denúncia formalizada) e a competência da Justiça estadual foi declarada exclusivamente considerando os indícios colhidos até a instauração do conflito, bem como o dissenso verificado entre os Juízes envolvidos, sendo que nenhum deles cogitou que o contrato celebrado entre o investigado e as vítimas consubstanciaria um contrato de investimento coletivo. 3. O caso dos autos não guarda similitude com o precedente, pois já há denúncia ofertada, na qual foi descrita e devidamente delineada a conduta do paciente e dos demais corréus no sentido de oferecer contrato de investimento coletivo, sem prévio registro de emissão na autoridade competente. 4.- Se a denúncia imputa a efetiva oferta pública de contrato de investimento coletivo (sem prévio registro), não há dúvida de que incide as disposições contidas na Lei n. 7.492/1986, notadamente porque essa espécie de contrato consubstancia valor mobiliário, nos termos do art. 2º, IX, da Lei n. 6.385/1976. 5- Interpretação consentânea com o órgão regulador (CVM), que, em situações análogas, nas quais há oferta de contrato de investimento (sem registro prévio) vinculado à especulação no mercado de criptomoedas, tem alertado no sentido da irregularidade, por se tratar de espécie de contrato de investimento coletivo. 6- Considerando os fatos narrados na denúncia, especialmente os crimes tipificados nos arts. 4º, 5º, 7º, II, e 16, todos da Lei n. 7.492/1986, é competente o Juízo Federal para processar a ação penal (art. 26 da Lei n. 7.492/1986), inclusive no que se refere às infrações conexas, por força do entendimento firmado no Enunciado Sumular n. 122/STJ.7- Ordem denegada (STJ, 6ª Turma, HC 530563 / RS,Dje 12/03/2020)
CONCLUSÃO
Deve-se incluir no conceito de “depósito” qualquer tipo de investimento no exterior aplicado no sistema financeiro, tais como, ações, fundos ou cotas de fundos de investimentos (incluindo previdência privada), haja vista o escopo da norma em tutelar o controle das divisas situadas no exterior, abrangendo os respectivos aprovisionamentos oriundos de quaisquer espécies de aplicações financeiras, com fundamento na hermenêutica da interpretação sistemática e teleológica.
Em relação ao delitos de sonegação fiscal, evasão de divisas (na modalidade prevista no caput do art. 22 da Lei 7.492/86) e lavagem de dinheiro, existirá a possibilidade de configuração, em tese, de ilicitude no uso do bitcoin, se houver comprovação dos requisitos da respectiva atividade criminosa, devendo ser criteriosamente analisado no caso concreto. (artigo 3ª do comunicado Bacen n.º 31.379, de 16 de novembro de 2017).
De outra parte, enquanto não forem regulamentados pelo BACEN e/ou CVM, não há como proceder à tipificação do crime de evasão propriamente dita (primeira parte do § único do art. 22 da LSN), ou da modalidade “evasão imprópria” ou “evasão depósito” (manutenção de depósitos no exterior não declarados ao Banco Central do Brasil- última parte do art. 22 da Lei 7.492/86), quando a transação financeira englobar a aquisição e/ou manutenção de bitcoin em contas digitais, em desconformidade com as normas da aludida autarquia federal.
No que se refere à oferta pública de contrato coletivo de investimento, por intermédio de especulação no mercado de criptomoedas, a aludida hipótese configura uma espécie de valor mobiliário previsto na Lei 6.385/76, submetendo os fatos às disposições da legislação dos crimes contra o sistema financeiro nacional Lei n.º 7.492/86).
Por fim, a utilização do bitcoin como meio para realização de operação de câmbio (conversão de real em moeda estrangeira), não autorizada, com o fim de promover a evasão de divisas do país, poderá configurar, em tese, o delito de evasão de divisas previsto no caput do art. 22 da Lei n.º 7.492/86.
REFERÊNCIAS:
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Casa de câmbio passa a aceitar bitcoin para compra de dólar. Disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,casa-de-cambio-passa-a-aceitar-bitcoin-para-compra-de-dolar,70002817208. Acesso em 08 de agosto de 2019.
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MASI, Carlo Velho. Manter depósitos não declarados no exterior (art. 22, parágrafo único, 2ª parte, da Lei nº 7.492/86). Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2738, 30 dez. 2010. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/18127>. Acesso em: 03 de agosto de 2019.
MASI, Carlo Velho. Omitir da Receita dinheiro no exterior não consiste em evasão de divisas. Conjur. Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-abr-26/carlo-velho-masi-omitir-receita-dinheiro-exterior-nao-evasao-divisas. Acesso em 05 de agosto de 2019.
NUNES, Leandro Bastos. A manutenção de depósito em fundos de investimentos no exterior e o crime de evasão de divisas. Disponível em https://jus.com.br/artigos/55068/a-manutencao-de-deposito-em-fundos-de-investimentos-no-exterior-e-o-crime-de-evasao-de-divisas. Acesso em 08 de agosto de 2019.
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Tributação de operações com criptomoedas carece de regulamentação específica. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-15/opiniao-tributacao-operacoes-criptomoedas. Acesso em 08 de agosto de 2019.
Fonte: https://jus.com.br/artigos/81411/evasao-de-divisas-e-bitcoin-a-luz-da-jurisprudencia-do-stj/3